Sexta-feira,
passava das 18h. O rush já começava a se formar nas avenidas e o estacionamento
do maior shopping da cidade já estava engarrafado com a busca por uma vaga.
Depois de circularmos um pouco e esperarmos bastante numa fila de indecisos que
não sabiam se iam ao subsolo ou subiam ao primeiro andar do edifício garagem,
finalmente encontramos um lugar para estacionar. Era o extremo do pátio, bem em
frente ao portão que dá acesso à favela que fica lá por trás. Para a maioria
dos que ali passavam, aquele lugar era uma espécie de Faixa de Gaza. Para nós,
perfeito.
Já
devidamente paramentado com a velha camisa (uns seis anos de uso, no mínimo!)
que comprei em um supercombo daqueles "leve três por R$ 12,00", um
short que quase morreu afogado na água sanitária na minha mais mal sucedida
tentativa de ser um solteiro competente na lavanderia, um par de havaianas
pretas milimetricamente sujas de terra, um boné desbotado e a barba por fazer,
desci do carro e simulei uma entrada triunfal a pé pela porta dos fundos. Mas
foi só para entrar no espírito. O teatro de verdade tinha que funcionar lá
dentro.
Já
tomando distância do meu editor, Fábio Bandeira de Mello, que me acompanhou até
avistarmos as primeiras vitrines, comecei a estudar o ambiente e ver mais ou
menos por onde começar, seguindo na medida do possível o roteiro previamente
elaborado. A ideia ali era entrar em lojas de diferentes segmentos e níveis, e
ver, de fato, como um cara simples seria atendido em cada uma. Como o shopping
é, do ponto de vista da oferta, relativamente democrático (com lojas bem caras
e outras mais acessíveis), sabia que seria possível traçar alguns paralelos.
Com isso em mente, fui lá.
No
térreo, tradicionalmente, estão as lojas mais populares. A primeira em que
parei foi uma de calçados. Mas, se o objetivo era ser maltratado para ter uma
história interessante para contar aqui, não deu certo. Mal parei na vitrine e
já veio um vendedor me dando boa noite. Como vi que ali me tratariam bem,
acabei não demorando muito. Mas, antes de sair, deu tempo ainda de outro
atendente se aproximar e, simpaticamente, dizer que, caso eu precisasse de
alguma coisa, poderia chamar.
Quase
em farrapos como eu estava, cheguei a acreditar que os seguranças poderiam me
tratar, no mínimo, como um suspeito. Foi então que resolvi pedir informação a
um deles. Caprichando nas gírias e no "sotaque malandrês", perguntei
a um deles onde ficava o banheiro mais próximo. E aí o indivíduo teve a
petulância de, também muito educadamente, perder uns segundos de seu tempo me
explicando detalhadamente como chegar ao toilette. Agradeci, abaixei a cabeça e
sai.
Próximo andar
Com
todo mundo me tratando bem naquela área, peguei a primeira escada rolante e
decidi passar logo para o nível 2 da ação: as lojas intermediárias. Caí em
cheio na entrada da filial de uma grande rede de móveis e eletrodomésticos.
Cresci logo os olhos para uma TV LED 3D que chamava atenção na entrada da loja.
Parei em frente a ela e comecei a ler os detalhes. No momento, havia uns dois
vendedores atendendo outros clientes e, por alguns minutos, fiquei sozinho. Mas
logo que ficou livre, um dos atendentes veio até mim, falando sobre o produto,
dando detalhes sobre a tecnologia e já adiantando as incontáveis formas
facilitadas de pagamento que eu poderia ter.
Foi
aí que comecei a desconfiar dessa história de preconceito. Principalmente
agora, com a economia brasileira bombando. A turma já tomou consciência de que
a classe C - e até a D - está endinheirada, ou pelo menos com crédito
suficiente para ir às compras. "Não dá mais para tratar ninguém mal
simplesmente por achar que não vai sair dali uma venda, porque todo mundo agora
pode comprar", pensei.
Mesmo
cada vez mais descrente na possibilidade de encontrar boas histórias para a
pauta, dei sequência à caminhada e resolvi parar numa loja de ternos, mas já
com a certeza de que o cara ia pensar: "olha lá que oportunidade: a classe
C não quer só TV de LED, quer andar na beca, bem elegante". Então, parei.
Olhei. Caminhei em frente à vitrine. Entre os manequins, vi que uns cinco
vendedores conversavam lá dentro. Suspeitei até que um tivesse me visto. Mas,
para tirar a prova, decidi entrar. Entrei, olhei, esperei. Opa! Ali a coisa começou
a mudar de figura.
Dos
cinco desocupados que jogavam conversa fora lá nos fundos da loja, um deles só
se dignou a vir me atender quando comecei a desarrumar as camisas empilhadas em
um dos armários internos. Mesmo assim, ele desistiu no meio do caminho, quando
um desenvolto usuário de camisas Lacoste entrou na loja e seguiu em direção ao
lado contrário de onde eu estava.
Aquele
primeiro desprezo me animou e aí fui com tudo para o teste da praça de
alimentação. Quase sempre que alguém passa em frente aos restaurantes e
lanchonetes, é comum as atendentes exibirem o cardápio e convidarem a conhecer
as ofertas. Então, para mostrar com bastante ênfase que queria comer alguma
coisa, passei lentamente por toda a circunferência do ambiente, olhando para
todos os menus afixados nas paredes. Em alguns casos, me atrevi até a olhar nos
olhos de uma vendedora. E nada. Quase no fim, ao me ver com ar de humilhado
depois de ter sido preterido por uma garçonete, que me deu as costas para
oferecer todo o brilho dos seus olhos a um casal aparentemente mais bem
abastado, a funcionária de uma cozinha pegou um cardápio no balcão e disse:
"pode olhar, moço".
O relógio de R$ 3 mil
Definitivamente,
a coisa começava a mudar de figura. Segui, então, com toda a estranha
felicidade de estar sendo mal atendido, para uma loja de relógios. E foi aí que
o bicho pegou. Assim como nos estabelecimentos anteriores, fui completamente
ignorado. Havia três vendedoras conversando ao lado de um balcão, mas todo
esforço que fizeram foi o de não me deixar perceber que elas haviam me notado.
Para fazer com que elas mesmas se denunciassem, resolvi me fazer uma vergonha:
olhei para o preço de uma peça e esbravejei: "Três mil conto? Tá doido! Lá
no centro acho um igualzinho por 10 reais". O trio não aguentou e soltou
aquela risada, me fitando com olhares que dispensavam qualquer palavra. Com o
rabo entre as pernas, sai cabisbaixo, saltitando de alegria por dentro. Minha
matéria estava salva.
Pouco
mais à frente, vi logo as duas mais caras lojas de roupas de todo o shopping. A
20 metros, já senti que ali estavam escondidas boas histórias. E não deu outra.
Dessa vez, nem me dei ao trabalho de fazer o teste da vitrine e entrei logo. Já
na primeira, fui mais uma vez ignorado e, por persistir na presença, comecei a assustar
a pobre moça do caixa, que logo chamou o único vendedor homem presente naquele
momento e lhe disse algumas coisas no ouvido, sem me perder de vista. O homem,
então, se dirigiu aos fundos da loja e eu saí, já começando a temer uma
aproximação de seguranças (o que estragaria meu trabalho no melhor da festa).
Nesse
momento, decidi, estrategicamente, mudar de piso. Foi então que cheguei ao
setor de serviços, no último andar. Lá, entrei na faculdade, onde fui pedir
informações sobre cursos: "dona, eu queria saber aí se vocês têm uns curso
técnico, profissionalizante. É que eu tô desempregado e queria ver se eu
aprendia uma profissão". E ela, fazendo uso de toda a estupidez que tinha
em si, me respondeu, apontando para o lado oposto: "sei não. Vá perguntar
lá dentro". Fui. Mas não havia ninguém por lá. Vi, entretanto, por um
vidro, que por trás da mulher que me atendeu, uma moça e um senhor com crachás
estavam conversando. Apesar de tentar atrair seus olhares para perguntar sobre
o tal curso, não tive sucesso.
Já
com material suficiente e temendo um baculejo dos seguranças, pois
provavelmente eles já haviam sido avisados pelo pessoal da loja de roupas sobre
minha presença estranha, decidi ir embora. Só que as coisas não acabaram por
aí. Fiquei curioso para saber uma coisa: como toda essa gente com quem lidei
nesse dia me trataria se eu estivesse de terno e gravata?
Sete dias depois
Sexta-feira,
passava das 18h. Uma semana depois de passear com minha camisa surrada, o short
manchado e o boné desbotado, entrei triunfante (neste momento usufrua da sua
capacidade de imaginar em câmera lenta), todo na beca, pela porta da frente.
Passo
a passo, refiz todo o roteiro de uma semana atrás e o resultado foi, no mínimo,
engraçado. Na loja de calçados, me atenderam da mesma forma nos dois dias.
Parabéns para esses vendedores. Dei o maior valor. Na filial da rede de
eletrodomésticos, entretanto, aconteceu algo inusitado: fui melhor tratado
quando cheguei arrastando o chinelo. Não sei se simplesmente dei o azar de
pegar um mau vendedor na segunda vez. Mas sai de lá com a suspeita de que os
juros do crediário pagos pelo "eu mais pobre" poderiam ser mais
interessantes que a possível compra à vista do "eu mais rico".
Como
iria jantar por lá mesmo, mudei o roteiro e deixei a praça de alimentação para
o fim. Passei, então, pela loja de ternos, onde rapidamente fui atendido. Mas
foi lá onde percebi o primeiro indício de um fato que viria a comprovar mais
tarde: independente da roupa do cliente, alguns vendedores atendem realmente
mal. Nesse caso, por exemplo, disse que queria uma camisa de uma cor que não
tinha lá. A moça me respondeu dizendo apenas que infelizmente não tinha, sem
fazer nenhum esforço para me mostrar que poderiam existir outras opções.
De volta aos relógios
Na
sequência, voltei à loja de relógios. Confesso que estava ansioso para esse
momento. E foi um dos mais excitantes, de fato. Coloquei o primeiro pé na loja
e a vendedora que mais havia zombado de mim na semana anterior me abriu um
sorriso imenso: "Olá, boa noite! Posso ajudar?". Sem nenhum
ressentimento pelo ocorrido do último encontro, pedi para ver um relógio
feminino para presentear minha namorada.
Ela
logo se apressou em abrir a vitrine, de onde tirou uma peça que, segundo ela,
era uma das mais caras da loja, mas que valeria a pena. Disse que seria um
presente encantador e que mulher nenhuma resistira aos lindos detalhes feitos
com pedras preciosas. Já contente com a cena, não perdi muito tempo. Agradeci o
atendimento e, para não sair com a impressão de que entrei só para olhar, pedi
um cartãozinho, perguntei o nome e prometi que voltaria para comprar (ledo
engano).
Repeti
o mesmo modus operandi em todos os estabelecimentos seguintes. Na loja de
roupas em que levantei suspeitas na primeira vez, fui recebido como um velho
amigo da família. A moça do caixa chamou novamente o único vendedor homem
presente no momento. Mas dessa vez não se preocupou em falar baixo:
"fulano, por favor, atenda aquele senhor que acaba de entrar". Nessa
hora, juro, quase comecei a rir. E então aproveitei a oportunidade para pôr em
prática uma pequena vingança. Pedi para ver quase todas as camisas visíveis na
vitrine e ainda boa parte das que estavam bem dobradas nas prateleiras
internas. Depois disse: "obrigado. Queria só dar uma olhada mesmo. Até
logo".
Agora quero um MBA!
Já
feliz da vida, segui rumo ao destino final. Novamente, entrei na faculdade e me
dirigi à moça da recepção. Dessa vez, não era a mesma pessoa. Cumprindo a
formalidade, pedi informações sobre MBAs e, depois de demonstrar um certo
despreparo para a função, a recepcionista apontou a moça da sala ao lado,
aquela que uma semana antes vi pelo vidro. Naquele instante, lá de dentro, ela
já me olhava atentamente. Nos entreolhamos e ela me chamou. Na hora, percebi
logo: foi amor à primeira vista (pelo que ela pensava ter no bolso ou na minha
conta bancária imaginária).
Como
um cavalheiro, cruzei a porta e fui até sua mesa: "boa noite?", disse
eu. "Olá, boa noite! Tudo bem?", disse a garota. Daí para a frente,
mandei a mesma conversa. Só que, em vez de cursos técnicos profissionalizantes,
pedi sugestões de bons MBAs. Ela, daí, tirou um monte de panfletos da gaveta
com informações sobre diversos cursos. Enquanto eu olhava, já foi logo
perguntando meu nome, e-mail e telefone (e eu fiquei imaginando de a próxima
pergunta ser: "vai fazer o que hoje à noite?").
Antes
de eu decidir por uma opção, o mesmo senhor que estava ao lado dela na primeira
vez chegou junto e começou a fazer recomendações, falar sobre formas de
pagamento e até mesmo tentar me convencer a fazer duas especializações ao mesmo
tempo (mal sabendo eles o quanto o "eu real" está suando para pagar a
que está cursando!). Satisfeito, agradeci a gentileza e, como um bom cafajeste,
pedi o telefone e prometi ligar. Em seguida, dei as costas e sai por aquela
mesma porta de vidro, para nunca mais voltar.
Para
fechar a noite em grande estilo, voltei à praça de alimentação e, como um rei
chegando a uma festa em seu reino, fui cortejado por praticamente todos que
trabalhavam ali em frente aos balcões. Depois de percorrer todo o espaço e
rejeitar um por um, comi um sanduíche no restaurante mais barato e fui embora.
Fonte: Administradores.
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