Resumo:
Mister se faz aplaudir a iniciativa legislativa da edição da
Lei de Recuperação Empresarial e a revogação da vetusta Lei de Falências. O
novel estatuto desvela o relevo que representa a empresa no contexto social e
econômico atual, buscando viabilizar, assim, a sua recuperação e preservação,
em perfeita sintonia com nossa Lei Fundamental, o que está a produzir
resultados positivos na rotina forense.
I. Considerações Iniciais
A Lei de Recuperação de
Empresas (nº 11.101), de 9 de fevereiro de 2005, que regula a recuperação
judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária,
foi editada com o notório intuito de desafogar o Poder Judiciário das inúmeras
demandas de falência – o que, efetivamente, tem se dado nas varas judiciais
País afora –, possibilitando à empresa devedora que passa por crise financeira
se valer dos institutos da recuperação judicial ou extrajudicial para
apresentar aos seus credores um programa de pagamento das dívidas que viabilize
à mesma quitar seus débitos sem que tenha que encontrar o seu fim.
De fato, a nova lei veio ao
encontro da Constituição Federal, que em seu art. 1º, inciso IV, fixa como um
dos fundamentos da República Federativa do Brasil os valores sociais do
trabalho e da livre iniciativa. Com isso, o legislador constituinte originário
de 1988 registrou a importância da atividade empresarial para a economia do
País, razão pela qual deve ser valorizada.
Deveras, a falência de uma
empresa é impactante para o meio social, em especial em Municípios pequenos,
cuja economia gira em torno, muitas vezes, de uma ou algumas empresas de porte
considerável para aquela realidade.
Nesse contexto e à luz de nossa Carta Política, importa analisar o instituto da
impugnação, forma processual inserida na fase da verificação dos créditos da
recuperação empresarial, já que o legislador, não obstante o avanço que
representa a Lei de Recuperação de Empresas, não foi preciso ao descrever o
instrumento, deixando em aberto vários questionamentos a seu respeito,
frequentes no curso do processo judicial.
II. Análise do Tema
Em uma visão simplória da
recuperação judicial, verifica-se que o procedimento apresenta as seguintes
fases: do pedido de recuperação dirigido ao Judiciário; da verificação dos
créditos; da concessão da recuperação; do cumprimento do plano de recuperação;
do encerramento da recuperação.
A fase de verificação e
habilitação dos créditos, prevista nos arts. 7º a 20 da Lei nº 11.101/05,
inicia-se com o deferimento do pedido de recuperação pelo juízo competente,
termina com a homologação do quadro-geral de credores – também feita pelo
magistrado – e se divide em duas subfases: uma preliminar (parajudicial) e
outra judicial; a primeira a cargo do administrador judicial e a segunda,
perante o juízo da recuperação.
Uma vez deferido o
processamento da recuperação judicial pelo juízo, cabe ao administrador – que é
nomeado pelo juiz e remunerado pela empresa devedora –, com base na
documentação contábil da empresa, fazer um levantamento dos créditos e dos
credores, relacionando-os e publicando edital com essa relação.
Neste primeiro momento, pode
ocorrer de o crédito lançado não corresponder exatamente à obrigação que o
credor pretende ver satisfeita, seja porque o valor relacionado diverge daquele
pretendido pelo credor, seja porque a natureza do crédito foi indevidamente
apontada pelo auxiliar do juízo ou, ainda, por qualquer outro motivo pertinente
ao crédito.
A prática forense tem
demonstrado que podem ser verificadas situações em que a documentação contábil
do devedor1 não permita ao administrador vislumbrar, de plano, todos
os débitos existentes, de modo que reste inevitável que o rol por ele elaborado
seja omisso em relação a alguns créditos.
Em razão destas duas
hipóteses, o art. 7º da Lei de Recuperação de Empresas possibilita que os
credores provoquem o administrador judicial, apresentando a ele sua dissensão
quanto ao valor ou à natureza do crédito relacionado, ou informando-o a
respeito da existência de crédito que não constou na lista. Na primeira
situação, a provocação se dará pela divergência; na segunda, pela habilitação,
tudo no prazo de quinze dias da publicação do edital que contém a relação
preparada pelo administrador.
Deste modo, o administrador
analisará os pleitos, tanto de divergência quanto de habilitação, e elaborará
uma segunda relação de créditos e credores, retificando o que entender
necessário.
Vencida esta fase
preliminar, poderá, ainda, haver a provocação do juízo para atuar na
verificação de créditos, seja pela habilitação ou pela impugnação, formas que
não se confundem, pois se prestam a finalidades diversas. Enquanto uma
viabiliza a insurgência contra um crédito lançado pelo administrador, a outra
se volta a incluir crédito por ele não relacionado.
Com efeito, o art. 10 do
diploma legal em análise possibilita que créditos ignorados pelo administrador
– porque não foi possível verificá-los na documentação contábil da empresa
devedora, bem como porque os credores não os apresentaram ao auxiliar do juízo
após a publicação da primeira relação de credores – sejam apresentados ao juízo
e venham, eventualmente, a compor a lista no quadro-geral de credores.
Por seu turno, o art. 8º da
Lei nº 11.101/05 prevê a impugnação contra a relação de credores, pautada na
ausência de qualquer crédito ou oferecida para discutir a legitimidade,
importância ou classificação de crédito relacionado.
Disso decorre a constatação
de que o importante instituto da impugnação tem por escopo retirar do rol de
credores apresentado pelo administrador judicial aqueles créditos indevidos,
fraudulentos ou extravagantes, razão pela qual podem impugnar a lista de
credores o comitê de credores, qualquer credor, o devedor ou seus sócios, ou o
Ministério Público.
Portanto, resta claro que a
via da impugnação viabiliza que os legitimados, para propô-la, se voltem contra
créditos alheios; contudo, a lei nada fala a respeito da possibilidade de os
credores se valerem da impugnação para apresentar divergência quanto a seus
próprios créditos.
De fato, de acordo com a
lei de regência, como já visto, a eventual divergência dos credores em relação
a seus próprios créditos deve ser apresentada ao administrador judicial em
quinze dias, contados da publicação do edital expedido em decorrência do
recebimento do pedido de recuperação, cujo conteúdo abarca a relação nominal de
credores juntamente com a discriminação do valor atualizado e a classificação
de cada crédito.
Embora não haja previsão
legal expressa da possibilidade de se discutir divergências quanto ao valor do
crédito lançado pelo administrador no edital acima referido, há que se admitir
que a impugnação sirva para este fim.
Isto porque, partindo da
premissa de que “o processo de habilitação é um processo contencioso”2,
a discussão a respeito do valor do crédito não pode ser de competência
exclusiva do administrador judicial e, assim, afastada do conhecimento do Poder
Judiciário, sob pena de patente afronta ao princípio constitucional explícito
no inciso XXXV do art. 5º.
Aliás, na mesma trilha,
retirar do credor a possibilidade de discutir o seu crédito em juízo feriria,
ainda, os princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa, na
medida em que não poderia participar na averiguação do crédito a que tem
direito dentro da ação de recuperação judicial.
Sendo esta, então, a
interpretação do art. 8º da Lei nº 11.101/05, que se coaduna com o texto
constitucional, atendendo ao princípio da interpretação conforme a
Constituição, deve-se deixar de lado a interpretação restritiva que afasta a
utilização da impugnação pelo credor para discutir divergências quanto ao seu
crédito.
Não obstante seja imperiosa
a aceitação da impugnação ajuizada pelo próprio credor a fim de discutir
divergências quanto ao seu crédito, seja em relação ao valor, natureza ou
qualquer outra dissensão, a interpretação do art. 8º da lei de regência indica
que, para fazê-lo, o credor deverá cumprir um requisito: ter apresentado sua
divergência tempestivamente ao administrador, sem que este o tenha atendido em
sua pretensão; ou ter sido prejudicado pela alteração de sua situação por
ocasião da publicação do edital previsto no art. 7º, § 2º, da mesma lei. Logo,
a primeira ocasião para o credor se manifestar sobre os créditos se dá perante
o administrador judicial (§ 1º, art. 7º), e o segundo momento, perante o
magistrado da Vara de Recuperação Judicial e Falências (art. 8º).
Com efeito, considerando que
“mesmo antes do acionamento da jurisdição, ao credor já havia sido dada a
oportunidade de solucionar a questão administrativamente (§ 1º, art. 7º),
solução que deverá ser a preferida por todos os interessados, ante a sua
simplicidade e rapidez”3, há de se reconhecer que, ao se abster de
apresentar sua divergência perante o administrador judicial, estará ele
deixando de exercer seu direito potestativo em fazê-lo, o que evidentemente
configura hipótese de decadência – extinção do direito pela falta de exercício
dentro do prazo prefixado, atingindo, via oblíqua, a ação –, já que está a
perder o direito de se voltar contra o crédito lançado pelo administrador, por
não tê-lo exercido no prazo previsto em lei.
Assim sendo, importante
concluir que, se não apresentar sua divergência perante o administrador,
oportune tempore, o credor não terá direito de fazê-lo perante o Judiciário,
vez que já terá perdido o próprio direito de se voltar contra o apontamento do
auxiliar do juízo.
Outro ponto relevante a ser
trazido à baila diz respeito à própria natureza jurídica da impugnação. Com
efeito, ela é a “ação incidente que tem por fito obstar a habilitação de
crédito”4, sendo que, por esta razão, o parágrafo único do art. 8º
do diploma de regência sabiamente determina a sua autuação em apartado em
relação aos autos do processo de recuperação judicial.
Sem dúvida, a impugnação se
enquadra perfeitamente ao disposto no Código de Processo Civil a respeito das
ações incidentais. O art. 5º do referido Codex estabelece que, se no curso do
processo tornar-se litigiosa a relação jurídica de cuja existência ou
inexistência depender o julgamento da lide, qualquer das partes poderá requerer
ao juiz que a declare por sentença, comando que se completa com aquele previsto
no art. 325 da mesma lei, segundo o qual, havendo contestação do direito que
constitui fundamento do pedido, o autor poderá requerer que, sobre ele, o juiz
profira sentença incidente, se da declaração da existência ou da inexistência
do direito depender, no todo ou em parte, o julgamento da lide.
Nesse contexto, se
prestando a impugnação a contestar o crédito (direito) de determinado credor
levado a concurso, litigiosa se torna esta relação jurídica, este direito de
cuja existência ou inexistência depende a inclusão ou não do credor no
quadro-geral de credores a ser homologado pelo juízo. Aliás, se julgar
procedente o pedido da impugnação formulada com base na inexistência do
crédito, estará o juiz a declarar a inexistência da relação jurídica, que não
poderá ser novamente discutida em outro processo, já que, a toda evidência,
haverá formação de coisa julgada material.
III. Considerações Finais
Embora passados muitos anos
de tramitação no Congresso Nacional, enquanto projeto de lei, deve ser
aplaudida a iniciativa legislativa da edição da Lei de Recuperação Empresarial
e a revogação da vetusta Lei de Falências. O novel estatuto desvela o relevo
que representa a empresa no contexto social e econômico atual, buscando
viabilizar, assim, a sua recuperação e preservação, em perfeita sintonia com
nossa Lei Fundamental, o que está a produzir resultados positivos na rotina
forense.
Entrementes, ante a lacuna
legislativa, deve-se ter em mente que, no processo de recuperação, divergir do
quantum ou da natureza do crédito lançado pelo administrador judicial não é o
mesmo que incluir crédito não relacionado, sendo que, enquanto aquela via se
faz por impugnação, forma sujeita a prazo e condição para o exercício do
direito de divergir, esta se manifesta pela habilitação de crédito (perante o
administrador ou retardatária, perante o juízo), que, apesar de não estar
sujeita à preclusão, pode fazer com que créditos ignorados pelo administrador
venham a compor a lista no quadro-geral de credores.
É pertinente registrar que,
embora não haja previsão legal expressa da possibilidade de se discutir
divergências quanto ao valor do crédito lançado pelo administrador na primeira
relação de credores, há que se admitir que a impugnação sirva para este fim por
ser esta a interpretação, conforme a Magna Carta, a ser dada ao art. 8º da Lei
nº 11.101/05. Do contrário, afrontam-se os princípios constitucionais do
contraditório e da ampla defesa – consectários naturais do devido processo
legal – e da indeclinabilidade da jurisdição ou universalidade da ação.
Outrossim, anote-se que o
direito de o credor se valer da impugnação para divergir do apontamento do seu
crédito, feito pelo administrador judicial, está condicionado à tempestiva
apresentação prévia de sua divergência ao auxiliar do juízo, sem que tenha sido
acolhida a sua pretensão.
Neste diapasão, a
impugnação apresentada pelo credor para discutir créditos próprios está sujeita
à decadência, de modo que, se não apresentar sua divergência tempestivamente ao
administrador judicial, perderá o direito de divergir do apontamento perante o
juízo.
Por fim, é mister consignar
que a impugnação dentro do processo de recuperação judicial ostenta natureza
jurídica de verdadeira ação incidental, já que o conteúdo do quadro-geral de
credores depende diretamente da sua decisão.
Notas
1 Nomenclatura utilizada pela LRE para se referir ao empresário e à
sociedade empresária.
2 FAZZIO JUNIOR, Waldo. Nova Lei de
Falência e Recuperação de Empresas. 2. ed. São Paulo: Atlas,
2005, p. 83.
3 BEZERRA FILHO,
Manoel Justino. Lei
de Recuperação de Empresas e Falências Comentada. Lei nº 11.101,
de 9 de fevereiro de 2005: Comentário artigo por artigo. 5. ed. São Paulo: RT,
2008, p. 80.
4 FAZZIO JUNIOR, Waldo. Op. cit., p. 83.
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